A última Maria

Por mais medíocre e sem graça que tenha sido a vida de um homem, ainda assim sempre há algum fato ou acontecimento digno de registro. Assim, depois de muito tempo passado do acontecido estou aqui sentado num banco no boulevard  construído pela ex-prefeita Luiza Erondina, que fica na avenida São João, depois da praça do Correio bem próximo ao largo do Paissandú. O local está muito degradado. Antigos prédios que abrigavam boas lojas hoje se transformaram em comércio de vendas de artigos piratas, velhos cinemas foram fechados dando lugar a predios abandonados. Só um ou dois bares e restaurantes insistem em continuar funcionando neste  lugar sujo e decadente. Olhando tudo isso minha memória me remete a fatos acontecidos há mais de quarenta anos.

Meu nome é Carlos dos santos Pereira, conhecido como Carlão da Pólvora. Ao contrário do que o apelido passa sugerir, não sou uma pessoa explosiva, na verdade sou até muito calmo.

Nasci na metade da década de 50, no bairro do Ipiranga, num lugar chamado Tanque da Pólvora e, quando entrei na escola, por ser um negão grandão me colocaram logo o apelido com o nome do lugar onde nasci e me criei.

Perdi meus pais muito cedo, fui criado pela minha tia Judite, que era irmã de meu pai e, quando fiquei órfão ela me levou para sua casa. onde morei até completar meus 18 anos.

Minha infância no Tanque da Pólvora foi tranquila e feliz, durarnte a semana depois da escola brincava com meus amigos no pequeno campinho de terra batida que havia no  lugar. As brincadeiras eram gostosas e divertidas. Jogo de botão, jogo de bola de gude e, claro, futebol. As meninas brincavam de roda e de amarelinha.

No bairro cuja a maioria dos moradores era oriunda do interior paulista, aos domingos se reuniam na casa de dona Benedita, para tocar e cantar  sambas da época. Tinha o seu Alcebíades do clarinete, o seu Aristeu do violão, o seu Olavo do bandolim  e o seu Antonio sanfoneiro. Todos eles vindos do interior em busca de uma vida melhor na capital.

Aos 11 anos, após terminar o quarto ano primário, fui trabalhar como auxiliar de balconista no bar do seu Nino, um velho migrante italiano que chegou ao Brasil logo após a segunda Guerra Mundial.

Foi nesta época que conheci o Alfredão. Ele era um homem negro bem retinto, alto e muito forte. Parecia um pugilista americano. Vestia sempre paletó e usava um chapéu de aba larga estilo panama.

Alfredão era também muito misterioso, ninguém sabia o que fazia, do que e nem como vivia. Gostava de tomar cerveja e rabo de galo e sempre pagava o que consumia no bar. Estava sempre com os sapatos bem engraxados e usava relógio e anel que pareciam ser de ouro.  Sempre que me via pelas ruas do bairro Alfredão esbanjando simpatia me dizia: “ menino você precisa conhecer o centro da cidade”

Até que um dia eu já estava com meus 17 anos  vim com Alfredão  conhecer a maior cidade  cidade da América Latina, uma das maiores cidades do mundo.

Era uma noite de verão, estava um calor abafado, Sentimentos confusos tomaram conta de mim. Não sabia se olhava as luzes ou as pessoas. Fui levado por Alfredão a um dos bares mais conhecidos da cidade - o Bar Ponto Azul - que ficava na avenida São João próximo a praça Júlio Mesquita. Local onde passei a trabalhar durante o dia e a frequentar durante a noite.

Foi lá que conheci  aquela que viria a ser a mulher mais importante da minha vida. Namorei e namorei Maria Rosa, Maria Beatriz, Maria Dolores, Maria das Graças, Maria do Socorro, mas nenhuma delas marcou tanto a minha vida como a última Maria.

Certa noite eu estava na porta do bar Ponto Azul, quando de repente vejo uma linda mulher que se aproximava. Seu corpo parecia uma obra de Rodin, cabelos pretos anelados, um sorriso alvaiade, de ancas largas e firmes, quando andava parecia marcar o compasso da batida do meu coração. Seus lábios carnudos como um  morango de boa safra pareciam ter saído de um poema de Vinicius de Moraes. Me aproximei dela, me apresentei, perguntei o seu nome e ela disse: Maria da Conceição.

Foi amor a primeira vista. Um mês depois estava eu e Maria da Conceição morando juntos. Aluguei um quarto e cozinha na rua Lopes Chaves, na Barra Funda, comprei cama, fogão, mesa, cadeiras uma geladeira velha e um televisor. Tudo muito simples, mas ali era o nosso ninho de amor.

Eu trabalhava no bar durante o dia e ela era manicure num salão de beleza na avenida São João. Nossa vida era agitada. As quintas baile no Garitão. As sextas baile no São Paulo Chic, aos sábados rodas de samba no Camisa Verde e assim ia.

Numa quinta-feira cheguei em casa mais cedo, louco para tomar um banho para ir junto com Maria da Conceição no baile especial no clube da cidade. Para minha surpresa Maria não estava em casa. Esperei, esperei e nada dela chegar. Fiquei preocupado, fui ao salão onde ela trabalhava e já havia fechado. Fui até o distrito policial do bairro e nada. Fui até a um pronto socorro e também nada.
Triste acabrunhado voltei para casa. De repente olho próximo ao fogão vejo um bilhete, sem nenhum vacilo abri. Nele estava escrito ;” Meu nego fui embora, peço desculpas por ser assim sem aviso. Mas vou em busca da minha liberdade. Não nasci para ser prisioneira do amor. Nasci para ser livre como o condor. Nego foi tudo tão bonito, tudo tão bom, não vou te esquecer nunca mais. Se cuida tá. Quem sabe a gente se encontra por aí, Maria da Conceição.”

Bem fiquei muito triste, tive a sensação que meu peito ia explodir. Chorei sozinho no que era o nosso quarto, que agora parecia imenso.
Bem, mas vida é assim mesmo e além do mais ela continua. Resolvi mudar de bairro. Fui morar na Aclimação. Novos ares, nova rotina. Lá eu já tinha alguns amigos, assim minha adaptação foi fácil.

No meu novo lugar, minha rotina era sair de casa cedo, ir até a padaria tomar um café, passar na banca de jornal para ler as manchetes do dia, aos domingos as vezes ia à missa na igreja de Nossa Senhora do Carmo.

Numa segunda-feira pela manhã saí de casa como de costume, fui até a padaria tomei meu café e em seguida parei na banca de jornal como de costume.

De repente, olho vejo a fotografia de uma mulher caída no chão. Os cabelos espalhados cobriam parte do rosto. Um copo quebrado na mão direita, cacos de vidro em volta de uma pequena poça de sangue. Pelas  roupas imediatamente eu reconheci. Era ela. Maria da Conceição. Sim ela mesmo. Morta!

De novo senti meu coração aos pedaços. Tive uma vontade enorme de sair correndo. Fiquei com os olhos marejados, Não conseguia acreditar no que via. Olhei de novo . Sim era ela, Maria da Conceição. Leio a manchete que em letras garrafais dizia : “ Morreu Conceição a dama das noites paulistanas”  Maria da Conceição foi morta assassinada após se envolver numa violenta briga com uma prostituta pelas imediações do largo do Paissandu.

O corpo de Maria da Conceição foi velado no próprio Instituto Médico Legal de São Paulo com a presença de parentes e alguns poucos amigos. Eu não fui, não tive coragem. Queria me lembrar dela daquele jeito que ela era quando estávamos juntos. Alegre, feliz, sempre bem humorada, ao lado dela a vida parecia ser mais simples  de viver.

Hoje, vinte e cinco anos depois estou aqui,bem próximo do local onde Maria da Conceição tombou morta, mas na verdade ela não morreu virou uma estrela e continua brilhando nas noites paulistanas, agora e para sempre!

Autor: Ivam Galvão
E-mail: ivamgalvaopoa@gmail.com

Comentários

  1. Li tudinho..mt lindo e triste. A Maria n deu valor ao amor!

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  2. Morei na dom Vilares vila das Merces, na infancia fui e passei muito por aquelas bandas. O texto, lembra muito o passado, puxei na internet mapas, hoje e totalmente diferente a região do Tanque da Polvora, ao contrario a região da são João no centro ainda preserva algumas imagens do passado. Roberto Gieseke

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